Parte-se do reconhecimento da complexa trajetória das sociedades democráticas modernas, inseparável da: construção da sociedade industrial, burocracia estatal e do conhecimento científico. Qualquer transformação significativa nessa organização social derivará e implicará em alterações no conhecimento. Como os impasses sociais são também impasses do conhecimento, as lutas em torno da construção de hierarquias sociais e instituições são embates pela interpretação da interligação do natural, do social e do psíquico. A suposta legitimidade ou ilegitimidade das estruturas sociais deriva de formas de entendimento que hoje são construídas por vastos aparatos de produção de conhecimento e de informação. Assim, as Universidades são corresponsáveis pela consideração sobre o diverso, o inusitado e as soluções oriundas do vivido de todos os humanos em sua relação com a natureza. A força e a violência que rondam as relações sociais e políticas, não são suficientes para manter coesas sociedades tão hierarquizadas. Como alterar os estatutos fechados dos saberes científicos, garantindo a eles o frescor das experiências desprovidas dos aparatos do poder, onde os níveis simbólicos tenham tanta atenção dos cientistas como os experimentos matrizados pelas modernas tecnologias? Constatamos que esta trajetória é distinta quando consideramos as diferentes sociedades colonizadoras e as sociedades que foram colonizadas a partir das navegações europeias.
Entender algumas das ressonâncias desta trajetória para o caso brasileiro é um dos objetivos deste Programa e pode ser útil ao entendimento das singularidades do sentido da colonização e da exclusão para o colonizado. Assim, um dos fundamentos epistemológicos do Programa reside na necessidade de alterações profundas nos modos de produção do conhecimento, uma vez que, com o advento da ciência moderna, constituiu-se um radical processo de separação entre o vivido e as formas científicas de conceber os sujeitos e as coisas. Essa separação se fez a partir de representações dos setores que se autoatribuíram o domínio sobre o entendimento da natureza e das relações sociais, em detrimento de saberes ignorados ou não considerados pelos cientistas. De certo modo, a hegemonia de um saber, inúmeras vezes mais arrogante do que superior, que emerge com as transformações sociais produzidas no bojo do colonialismo desde o século XVI. Essa hegemonia, cujos fundamentos políticos apoiavam-se em uma concepção limitada da democracia, provocou uma separação abissal entre povos e culturas do Norte e do Sul. Frequentemente, as relações entre aqueles povos eram permeadas por mútuo desconhecimento, indiferença, preconceitos, agressões e violência.
Na modernidade ocorreram alterações profundas introduzidas nas relações entre as estruturas de poder e os diferentes sujeitos sociais. Era preciso abrir espaço para os pleitos diferenciados e distribuir parcelas do poder aos sem representação. Para isso a separação entre os que podiam reclamar e os proibidos deste ato gerou confrontos que encerraram o Antigo Regime. De uma aspiração revolucionária, no século XX, a democracia tornou-se um slogan adotado universalmente, mas vazio de conteúdo (Wallerstein, 2001). A vinculação entre a trajetória democrática e a construção do conhecimento no interior desse paradigma transformou paulatinamente este dilema histórico num problema epistemológico, já que o esvaziamento da democracia condicionou o papel e o lugar do conhecimento e as maneiras de sua produção ao longo do último século.
Ao final da Segunda Guerra Mundial dois debates envolveram os mais diferentes grupos de estudiosos: o desejo da democracia e a busca de sua viabilidade universal. A variação na prática democrática foi vista com maior interesse no pós Guerra Fria, especialmente pela superação das adjetivações popular ou liberal. Como decorrência do processo de globalização, emergiram com mais clareza as práticas da democracia local e suas variações no âmbito dos Estados Nacionais, permitindo a recuperação de tradições participativas (como ocorreu em alguns níveis no Brasil (orçamento participativo em Porto Alegre), na Índia (abertura para participação das castas no processo político) e na Bolívia (estruturação do Estado pluri étnico).
À luz deste processo observa-se uma tríplice crise no conhecimento sobre a democracia: sua viabilidade universal (Moore, 1966); sua existência numa única forma homogênea (Schumpeter, 1942) e sua variação no interior dos Estados nacionais, a partir da recuperação de tradições e saberes desprezados pela hegemonia do conhecimento dominante (Anderson, 1991). Decorre desta última reflexão a necessidade de se ampliar as investigações sobre saberes específicos gestados tanto nos diversos lugares, quanto nas várias áreas do conhecimento, fenômeno já em curso na antropologia, na psicanálise, na história. Mas, foi até o presente momento no direito (Bobbio, 1986) e na Filosofia que o debate se explicitou especialmente com as contribuições de Lefort, (1986); Castoriadis, (1986); Habermas, (1995) para os países do Norte e Lechner, (1988); Borón, (1994) e Nun, (2000) para os países do Sul. Estes estudos, entretanto, mantiveram a mesma modalidade de procedimentos anteriores, reafirmando as concepções substantivas da razão, não reconhecendo, portanto, a pluralidade do humano e seus saberes. O desafio que está posto atualmente é o de superar a idéia do bem comum mantida nesses estudos e criar uma gramática cultural e social para além do entendimento da inovação social, articulada à inovação institucional, ou seja, de nova institucionalidade para a democracia que não permaneça circunscrita apenas às instituições do Estado.
A utilização da esfera pública para debater as desigualdades existentes na esfera privada, proposta por Habermas como princípio de deliberação amplo, introduziu uma cunha no postulado centrado no primado da autorização do Estado, conforme defendido por Kelsen, Schumpeter ou Bobbio. Mas, como define Joshua Cohen (1997), é necessário ou aceitar a democracia já existente em alguns lugares, na forma coletiva do poder político, ancorada em um livre processo de razões entre iguais, ou, então, criar um novo modo de produção do conhecimento, ancorado numa nova gramática que se constitua na democracia participativa e não mais no processo representativo, esgotado na separação abissal entre representantes, representados e representação.
Trata-se, portanto, neste Programa de Pós Graduação de reunir estudiosos que se disponham a investigar as experiências decorrentes destas análises críticas e abrir um amplo campo de escutas e registros articulados na tríade sobre o vivido: inventário dos novos conhecimentos singulares, uma outra dimensão para a ciência e um saber que dialogue com os diversos habitus. A metodologia está enraizada no encontro entre oralidades que se abrem para novos registros e formulações de significados, para conhecimentos originários das relações democráticas e participativas, onde os saberes interagem em novas linguagens visando uma epistemologia dos múltiplos significados da cultura como vivência política que expande e partilha poderes: uma ecologia dos saberes entendida como a indissociabilidade entre o vivido e os saberes que interconectam diferentes tempos e espaços e que permitem analisar os fenômenos culturais integrados no ecossistema que regula e protege a vida, identificando a imensa gama das experiências até então desconsideradas pela separação entre o saber científico e os múltiplos saberes existentes no planeta.